Publicado originalmente pelo site UOL, em 19/08/2015.
Pelas lições que insiste em não querer aprender, Dilma já
foi 'saída'.
Marina Silva
Especial para o UOL
Mais uma vez, manifestações. A favor e contra o impeachment
da presidente da República. Desta vez com alterações ainda maiores no tom das
vozes e no teor das falas. Houve até quem ameaçasse fazer barricadas nas ruas.
Ainda bem que era apenas retórica. Em todo o país, ocorreu de forma pacífica o
exercício legítimo do direito da sociedade de protestar contra os que usurpam
suas vitórias e roubam suas esperanças.
Podemos concordar com todas as falas, todas as faixas, todas
as narrativas? Claro que não, mas a honestidade impõe reconhecer que as ruas
mostraram uma monumental e muito relevante insatisfação contra a corrupção e a
mentira entranhadas nas instituições e nas relações de poder.
Contra a deterioração da situação econômica do país pairando
sobre a vida de todos. Contra os acordos sub-reptícios que ainda continuam
sendo feitos visando benefícios políticos de curto prazo, atentatórios ao
interesse da sociedade e à integridade do Estado. A favor da ação independente
da Justiça e dos órgãos de investigação.
Tenho denunciado, com a insistência que os meios à minha
disposição permitem, a atitude lamentável de alguns políticos – incluindo
alguns dos atingidos pela crise política e pelas denúncias de corrupção – de
instrumentalizar o momento e as instituições, aproveitando-se dos problemas em
vez de buscar soluções compatíveis com o interesse público e o clamor por
mudanças.
É o uso perverso da máxima que diz que "crise é
sinônimo de oportunidade". Buscam a oportunidade de melhorar seu cacife no
jogo do poder, enquanto a sociedade está nas ruas questionando, cada um à sua
maneira, o estrago que esse jogo faz, e tenta continuar fazendo, na vida do
país e dos cidadãos. O vaivém de manobras no espaço institucional para proteger
pessoas e grupos só agrava a instabilidade política, social e econômica, e gera
revolta.
As manifestações são legítimas. Elas são o termômetro da
crise política, e não se pode culpar o termômetro por indicar a gravidade da
febre. A responsabilidade dos que receberam um mandato é enorme e, se traíram a
confiança da sociedade, precisam se explicar perante a Justiça e se submeterem
às penas, caso o ilícito seja comprovado. Esperemos que este seja um caminho
sem volta no Brasil.
Governabilidade pragmática
Nas vésperas das manifestações, fiz a seguinte postagem:
"O Game of Thrones da política colocou em risco tudo o que a sociedade
brasileira alcançou de mais importante nas últimas décadas: democracia,
estabilidade econômica, inclusão social. (...) Se queremos interromper o ciclo
pernicioso que solapou as conquistas de décadas de trabalho, temos que garantir
que o combate à corrupção não seja interrompido. É no sucesso das investigações
e na exemplar punição dos culpados que está a chance do Brasil de recuperar a
confiança em si mesmo. O resultado será uma oportunidade para a necessária
mudança cultural: uma nova atitude dos governos, dos parlamentos, das empresas,
das instituições e de todos os cidadãos e cidadãs. Um país que se eleva, pois
se leva a sério".
Se, de fato, queremos mudar e estabilizar a mudança,
precisamos fechar o ciclo da nefasta governabilidade pragmática feita com base
na distribuição de cargos, assentos em conselhos e ministérios com altos
orçamentos, tendo como finalidade maior a continuidade no poder e ganhos
descabidos à custa do Estado.
Ela é fonte permanente de corrupção, fragilização e
descontinuidade de políticas públicas, além de enterrar a ética como elemento
indispensável ao exercício da função pública. Precisamos transitar para um
modelo de governança que componha o governo e construa sua base parlamentar com
o lastro de um programa fortemente legitimado pela sociedade e aberto à sua
participação e fiscalização.
Isso se chama institucionalização das conquistas, em lugar
da apropriação indébita delas, como se pessoas ou partidos fossem seus donos.
Apropriação esta que se completa com a tentação de se perpetuar no comando do
país, lançando mão de meios que, na prática, inibem a alternância no poder e
colocam em risco o fortalecimento da democracia.
O Brasil precisa parar de dar cheque em branco a seus
governantes e começar a exigir clareza e cumprimento de programas. Não pode
mais se deixar levar, como aconteceu nas eleições de 2014, pela ditadura do
marketing, pela lei do mais forte, pelos slogans vazios e pela agressividade
das mentiras. Continuar a proceder assim é alimentar as ervas daninhas que
crescem frondosas no quintal da política tradicional, regadas a acertos espúrios
e dando sobrevida contínua a figuras e atitudes que já fizeram muito mal ao
país.
Os que estão hoje em posição de poder – especialmente os que
têm alguma participação na gestão culposa ou dolosa que resultou na crise atual
– devem aceitar a ativa vigilância da sociedade e não tentar desqualificá-la.
Não é hora de manobras de bastidores pactuadas por poucos. Não é mais hora da
desculpa esfarrapada e inaceitável de "todos fazem isso" ou
"sempre foi assim".
Nova política
Pois é chegada a hora de não ser mais assim. E a
responsabilidade histórica indelegável de abrir caminho a este novo momento,
ainda que seja de todos nós, é sobretudo de quem está no poder hoje. Se há
contas do passado a acertar, seja de quem for, que a justiça seja acionada para
tanto. Que isso não se transforme em justificativa para evitar ou minimizar o
necessário acerto de contas do presente.
É hora, principalmente, de um envolvimento geral na
construção da transição que assegure profundas alterações na visão, nas
estruturas, nos processos e nas nossas dinâmicas políticas, econômicas e
sociais. Não só pelas mãos dos partidos e das lideranças confinadas em seus
próprios interesses, mas por meio de um debate amplo e transparente em torno de
uma agenda que ajude a criar novas perspectivas para a nação.
Chega de agendas meramente de poder ou de manutenção do
status quo, que são positivas apenas para quem as faz e sempre surgem nos
momentos de crise para contrabandear acordos e propostas patrocinadoras de
retrocessos contrários aos interesses dos mais frágeis.
Em sua sabedoria, de alguma forma, os que estão se
mobilizando para além da velha polarização política e das cartilhas ideológicas
de ocasião, entendem que agora, mais do que nunca, chegou o tempo de incluir o
Brasil num futuro ético, justo e sustentável.
Entendem que não é estratégico nem correto reduzir seus
esforços a um simples "fora Dilma". Sentem que de certa maneira ela
já foi "saída" pelas forças políticas tradicionais, entre as quais
parte de seu próprio partido. Saída, enfim, pelas lições que insiste em não
querer aprender.
Para aqueles que sentem que a grande força deste momento difícil
é o exercício pleno de sua cidadania, o desafio é deixar cada vez mais claro
que estão se movimentando para dar suporte não a forças retrógradas, mas à
chegada de um novo tempo, sonhado e inscrito na Constituição resultante de
nossa jovem democracia.
E, para tanto, é preciso fazer ecoar uma nova cultura
política, não de alinhamento automático e subalterno a "salvadores da
pátria", sejam eles quem forem. Mas uma cultura política da independência,
dos valores universais, da ética, da radicalidade da democracia, na defesa da
investigação com autonomia, da punição por respeito à justiça e não por
sentimento de vingança, na busca do diálogo legítimo, que não seja apenas uma
armadilha para encurralar e dobrar adversários. Um novo tempo dos que,
aprendendo com os próprios erros, amadurecem, tornam-se melhores e maiores.
Texto reproduzido do site: noticias.uol.com.br/opiniao/coluna
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