quarta-feira, 5 de março de 2014

Artigo: O que está por baixo do medo de usar saia?


Publicação do Digestivo Cultural, 27/2/2014.

O que está por baixo do medo de usar saia?
Por Adriana Baggio.

Em meados de fevereiro, último dia daquela onda de calor que torrou os miolos dos curitibanos, alunos de uma faculdade de Comunicação Social aqui da cidade foram para aula usando saia.

A inspiração veio do rapaz no Rio de Janeiro que não pode ir trabalhar de bermuda. Já que as saias não eram proibidas, foi o que ele vestiu. Ficou famoso nas redes sociais. Aproveitando o vácuo da repercussão, o apresentador de TV Rodrigo Faro postou fotinha no dia seguinte chegando de saia na emissora. Como se fosse o que ele veste todo dia.

Mas enfim. Os alunos não são celebridades em busca de audiência e nem são proibidos de usar bermuda na faculdade. Suas motivações eram outras: questionar as proibições sem sentido; gerar uma reflexão sobre as constrições sociais que regem o que se pode ou não vestir; provocar uma fratura no senso comum, para que se entenda que essas coisas que parecem tão certas não têm nada de naturais. São culturais e, como cultura, podem mudar de uma época para outra, dependendo do pendor da sociedade.

Ao serem apresentados a esta ideia - ir de saia para a faculdade -, alguns tiveram receio: "Melhor não, vão pensar que sou gay". Por mais que não haja a mínima relação entre roupa e orientação sexual, quem pode culpá-los por pensar assim? Estamos tão habituados aos simulacros de gênero e sexualidade da nossa sociedade que mal nos damos conta do tanto de desconhecimento que envolve o assunto e a maneira como lidamos com ele.

A saia é uma roupa associada ao gênero feminino. Mas não foi sempre assim. Durante muito tempo, todo mundo, fosse homem ou mulher, usava "saia". Imperadores machos e viris usavam saia. Conquistadores bárbaros e cruéis usavam saia. Jesus usava saia. (E eu nunca ouvi ninguém dizer que Jesus era gay por causa disso.)

Gênero é uma construção cultural que classifica os seres humanos em homens e mulheres, ou seja, em gênero masculino e feminino. As marcas de gênero incluem, é óbvio, aspectos físicos e gestuais, mas não se limitam a eles. E nem sempre as marcas de gênero que certa pessoa apresenta correspondem ao seu sexo biológico.

Ser homem ou mulher - ou melhor, macho e fêmea -, tem a ver com a genitália que apresentamos ao nascer. Mas nem sexo (genitália) nem gênero (construções culturais) definem o que é ser gay ou hétero. A homossexualidade e a heterossexualidade têm a ver com a orientação dos nossos relacionamentos afetivo-sexuais.

É importante frisar o uso da palavra orientação (e não de outra mais determinante ou normativa). Primeiro: trata-se de algo com o qual a pessoa nasce, e não de uma "opção" feita em determinado momento da vida. Segundo: ela indica, e talvez isso seja o mais assustador para alguns, que eventualmente um heterossexual pode experimentar um episódio de homossexualidade. E vice-versa.

Se essas explicações desconstroem a associação entre a roupa e a homossexualidade, elas não dão conta de outros aspectos do receio expresso lá no começo, que seriam: a masculinidade de alguém é algo tão frágil que pode ser colocada em xeque pelo simples uso de uma peça de roupa? Quantos pesos é preciso carregar para ser reconhecido como homem em nossa sociedade? E mais: por que essa obsessão em determinar o que homens e mulheres podem ou não vestir?

Até poucos anos atrás, ainda existia no código penal da França uma lei que proibia as mulheres de usarem calça comprida. Na sua origem, a justificativa para essa lei era a necessidade de se identificar claramente os gêneros. Algo que não seria tão peremptório se os gêneros fossem tratados com igualdade, se um não tivesse mais privilégio do que outro. Certo?

Aliás - e isso é interessante -, as saias, hoje, são quase que "proibidas" também para as mulheres. No dia em que os alunos foram de saia à faculdade, suas colegas também usaram a mesma peça. E não precisa ser muito observador para se dar conta que poucas vezes elas foram vistas na sala de aula com aquela roupa, tão obviamente feminina.

É porque hoje não se usa saia impunemente. Uma mulher de saia (não importa o comprimento) é mais suscetível ao assédio físico e verbal, às "passadas de mão" e "encoxadas" nos transportes coletivos, ao estupro. Duvida? Dê uma olhada nos cartazes e nas palavras de ordem das manifestantes quando protestam contra a violência. Você vai ler e ouvir muitas vezes a palavra "saia".

A experiência que meninos e meninas viveram naquele dia ensinou mais do que qualquer aula sobre o respeito ao outro, sobre diversidade, sobre o fato de que roupa não determina caráter. Já o tratamento dado ao episódio por um certo programa de TV também ofereceu a estes alunos, futuros publicitários e jornalistas, uma lição inestimável: a do papel e da responsabilidade que tem a mídia no reforço e na perpetuação de estereótipos negativos, que por sua vez servem de base para a discriminação, a intolerância e a violência.

Apesar da abertura de pensamento que certamente o "saiaço" conseguiu promover, não há ilusão de que o preconceito acabe. Preconceito todos nós temos. Se é difícil desconstruí-los, pelo menos compreenda como eles se estruturam, controle-os e guarde-os para você. Ter opinião é permitido. Mas julgar e agredir outras pessoas por um motivo tão besta quanto a roupa que decidiram vestir (ou despir), isso é inadmissível.

Foto e texto reproduzidos do site: digestivocultural.com/colunistas

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