“O cara”, de que falou Obama quando Lula tinha
85% de aprovação, não é mais aquele...
Ilustração Alphadog/VEJA.
Publicado originalmente no site da Revista Veja, em 21 de abril de 2016.
Lula: O mito estraçalhado. A trajetória de Lula o levou da
posição de “sindicalista combativo”, por meio da qual se projetou no país, a
lobista das grandes empreiteiras. Um fim melancólico para quem, no passado,
representou uma esperança de grande parte do povo brasileiro.
Por: Francisco Weffort*
Luiz Inácio Lula da Silva vai chegando ao fim do caminho. Mesmo
ele é capaz de perceber que está acabando o terreno à sua frente. Antes do
petista, tivemos casos semelhantes desses meteoros da política que vêm não se
sabe de onde, passam por grandes êxitos, alcançam rapidamente o topo e depois
caem miseravelmente. Já nos esquecemos de Jânio Quadros? Lula é diferente de
Jânio em um ponto: veio de mais baixo na escala social e conseguiu uma
influência mais organizada e duradoura na política do país. Dilma Rousseff,
embora pareça um meteoro, não é propriamente um caso político. O fato de ela
ter chegado à Presidência da República foi apenas um enorme erro de Lula
cometido em um dos seus acessos de personalismo. Erro, aliás, que o empurra com
mais rapidez para o fim. "O cara", de que falou Barack Obama quando
Lula tinha 85% de aprovação, não é mais aquele...
Há algum tempo, muitos gostavam de ver em Lula um
"filho do Brasil". Era o seu primeiro mandato, quando se pensava que
surgia no país uma "nova classe média". Com a crise dos dias atuais,
essa "nova classe" provavelmente desapareceu. Outra das veleidades
grandiosas do petista, já no fim do seu governo, foi um suposto plano para
terminar com a fome no mundo. Também naqueles tempos, alguns imaginavam que o
Brasil avançava para uma posição internacional de grande prestígio.
Muitos desses sonhos deram em nada, mas, para o bem e para o
mal, Lula foi um filho do Brasil. Aliás, também o foram os milhares, milhões de
jovens fruto do "milagre econômico" dos anos Médici, assim como,
antes deles, os filhos da democracia e do crescimento dos anos JK, ou, se
quiserem, algumas décadas mais atrás, da expansão aluvional das cidades que
assinala o nosso desenvolvimento social desde os anos 1930. No Brasil, temos a
obsessão permanente do progresso, assim como uma certa vacilação, também permanente
em nosso imaginário, entre a ditadura e a democracia. Lula foi uma variante
desse estilo brasileiro de vida. Queria resolver as coisas, sempre que
possível, com "jeitinho", ao mesmo tempo que sonhava com as benesses
do "Primeiro Mundo" e da modernidade.
Na política brasileira, porque vinha de baixo, o petista
tinha traços peculiares que se revelam em sua busca de reconhecimento como
indivíduo. Nesse aspecto está o seu compromisso com a democracia, aliás muito
aplaudido no início de sua vida como político. O sindicato foi seu primeiro
degrau e, mais adiante, uma das raízes de seus problemas. É que, a partir desse
ponto, Lula passou a buscar seu lugar como cidadão numa instituição aninhada
nos amplos regaços do Estado. Ele começou em uma estrutura às vezes repressiva
e muitas vezes permissiva, que dependia, sobretudo, como continua dependendo,
dos recursos criados pelo Estado por meio do "imposto sindical". A
permissividade maior vinha do fato de que tais recursos não passavam, e ainda
não passam, pelo controle dos tribunais de contas.
O maior talento pessoal de Lula foi sair do anonimato,
diferenciando-se dos parceiros de sua geração. No sindicalismo, falou sempre
contra o "imposto". E talvez por isso mesmo tenha logrado tanto
prestígio como sindicalista combativo e independente que não precisou fazer
nada de concreto a respeito. Na época das lutas pelas eleições diretas e pelo
fim do autoritarismo reinante sob o Ato Institucional nº 5, dizia que "o
AI-5 dos trabalhadores é a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT". Mas
em seu governo não só manteve o imposto e as leis sindicais corporativistas
como foi além, generalizando para a CUT e demais centrais sindicais os
benefícios do imposto.
O que tem sido chamado, em certos meios, de
"carisma" de Lula foi sua habilidade de sentir o seu público. Chamar
essa "empatia", uma qualidade que qualquer político tem, em grau
maior ou menor - e que, aliás, sempre faltou a Dilma -, de "carisma"
é uma impropriedade terminológica. Em sociologia, o fenômeno do
"carisma" pertence ao universo das grandes religiões, raríssimo no
mundo político, e, quando ocorre, é sempre muito desastroso. Os fascistas de
Mussolini diziam que "il Duce non può errare" ("o Duce não pode
errar"), para exaltar uma suposta sabedoria intrínseca ao ditador. Não era
muito diferente das fórmulas típicas do "culto da personalidade" de
raiz stalinista. Embora tais fórmulas estejam superadas na esquerda há tempos,
os mais ingênuos entre os militantes do PT ainda se deixam levar por coisas
parecidas. Consta que, no mundo de desilusões e confusões do
"mensalão", um intelectual petista teria dito: "Quando Lula
fala, tudo se esclarece". Não ajudou muito...
Luiz Inácio Lula da Silva foi uma das expressões da complexa
integração das massas populares à democracia moderna no Brasil. É da natureza
da democracia moderna que incorpore, integre a classe trabalhadora. No Brasil,
como em muitos países, isso sempre se fez por meio de caminhos acidentados,
entre os quais o corporativismo criado em 1943, no fim da ditadura getuliana, e
mantido pela democracia de 1946, como por todos os interregnos democráticos que
tivemos desde então. O corporativismo se estende também às camadas
empresariais, assim como a diversos órgãos de atividade administrativa do
Estado brasileiro. Favoreceu a promiscuidade entre interesses privados e
interesses públicos e certa medida de corrupção que, de origem muito antiga,
mudou de escala nos tempos mais recentes com o crescimento industrial e a
internacionalização da economia brasileira. Nessa mudança dos tempos, Lula
passou de "sindicalista combativo" a lobista das grandes
empreiteiras. Um fim melancólico para quem foi no passado uma esperança de
grande parte do povo brasileiro.
* Professor emérito do Departamento de Ciência Política da
Universidade de São Paulo e ex-ministro da Cultura (de 1995 a 2002, no governo
Fernando Henrique Cardoso). Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores
(PT).
Texto e imagem reproduzidos do site: veja.abril.com.br
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